Uma série de minicontos experimentais e não-pretensiosos, rs...
O ofício
Pegou seu bloco e começou a escrever. Decidira tentar mais uma vez com os contos. É a história de um casal. Cena corriqueira: ela secando os cabelos e ele irritado pois não consegue ouvir o futebol na tv. Discutem. Enquanto escreve, sente-se feliz consigo mesma: "é uma história comum, muitos vão se identificar". Continua escrevendo o diálogo do casal. "As falas estão bem plausíveis", pensa. A história continua, mas o contentamento diminui. "O que quero dizer com isso tudo?" As linhas se seguem, mas o diálogo não chega a lugar algum. Pensa em arrancar as folhas e começar outra história, mas não consegue: sua mão está escrevendo sozinha. A discussão segue interminavelmente. Não há mais argumentos mas os personagens continuam a discutir, e a caneta a escrever. Tenta levantar da cadeira, gritar, empurrar o papel... Tudo em vão. As horas passam. Tornou-se prisioneira das letras. A história prossegue.
Férias
Ela: amor, a gente podia viajar nestas férias, né?
Ele: claro, linda. Você está a fim de ir a algum lugar?
Ela: a gente podia visitar aquele seu amigo, né?
Ele: quem, o Val?
Ela: não, aquele outro.
Ele: quem, o Dodô?
Ela: não, aquele outro.
Ele: quem, o Nardinho?
Ela: não, aquele outro.
Ele: quem?
Ela: aquele lá... que você sempre conta aquelas histórias...
Ele: quem, o Elton?
Ela: isso!
Ele: você quer ir visitar o Elton?
Ela: é, você sempre fala dele. A gente podia ir visitá-lo, né?
Ele: o Elton? Aquele que tem uma mansão em uma praia privativa no Nordeste, que eu não vejo há dois anos, que é um dos melhores amigos da minha ex-namorada, com quem fiquei por sete anos, noivei e que terminou comigo há seis meses, sendo que você sabe tudo isso e a gente só está junto há dois meses? Esse Elton?
Ela: onde é mesmo que o Dodô mora?
Baseado em fatos semi-reais relatados por pessoas semi-reais.
Ofício
Os personagens discutem há três dias. Ela já não come, não dorme e não vai ao banheiro: sua mão está presa à caneta e a caneta ao papel. Seu corpo não tem mais forças. Decide acabar com tudo. O personagem saca uma arma e atira à queima roupa na cara da mulher. Antes que o corpo dela chegue ao chão, ele atira contra a própria cabeça. A escritora enfia a caneta em sua jugular e assiste contentemente ao sangue derretendo as páginas daquela história que ela odiou ter escrito.
Visita
Foi passar um fim de semana na casa do tio. Enquanto termina de se enxugar no banheiro, ouve a voz de alguém falando sozinho. Aproxima o ouvido à porta. Seria possível que o tio estivesse rezando? Ali, bem na passagem entre o banheiro e o quarto de visitas? Imagina-se fazendo aquele trajeto correndo, enrolado na toalha. O constrangimento toma conta. E se o tio o interpelasse, convidando-o a se juntar na oração? Inaceitável. Os minutos passam e a voz continua. Crendo que a reza do tio só teria fim com sua presença, não agüenta a pressão: pula a janela e vai embora, começar vida nova em algum lugar distante daquilo tudo.
Lexicofilia
Cresceu ouvindo que seria escritora. Colecionava dicionários, amava as palavras. O que ninguém sabia é que era incapaz de escrever. Como escolher uma palavra em detrimento de uma infinidade de sinônimos? Era lexicamente poligâmica.